Mostrando postagens com marcador Cultura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cultura. Mostrar todas as postagens

O que significa a expressão: Mão de vaca!

Nenhum comentário

14 julho 2025

 

A Mão de Vaca: Quando a Economia Vira Exagero

Quem nunca conheceu alguém que é chamado de "mão de vaca"? Esse termo popular no Brasil se refere àquela pessoa extremamente econômica, que evita gastar dinheiro a qualquer custo, mesmo quando a situação claramente exige. Ser econômico é, sem dúvida, uma qualidade importante, mas há uma linha tênue entre economizar com inteligência e exagerar a ponto de se tornar motivo de piada.

O Perfil da Pessoa Mão de Vaca

A pessoa mão de vaca geralmente tem um comportamento bastante previsível. Ela nunca quer dividir a conta em partes iguais no restaurante, prefere andar quilômetros a pé a pagar uma passagem de ônibus e, muitas vezes, reutiliza objetos até o extremo. Por trás desse comportamento pode haver vários fatores: medo de passar necessidades no futuro, criação rígida, ou simplesmente um hábito cultivado ao longo dos anos.

Algumas pessoas justificam suas atitudes dizendo que preferem “guardar para amanhã” ou que “dinheiro não dá em árvore”. Em muitos casos, esse excesso de economia não se reflete apenas no consumo próprio, mas também nas relações com os outros. Presentes baratos, convites recusados para evitar gastos e até atitudes egoístas acabam marcando a convivência com quem é assim.

Quando a Economia Passa do Limite

Economizar é diferente de ser mesquinho. A pessoa econômica sabe administrar seu dinheiro de forma responsável, faz escolhas inteligentes e evita desperdícios. Já a pessoa mão de vaca geralmente se priva, e priva os outros, de momentos simples e prazerosos apenas para não gastar.

Alguns exemplos clássicos:

  • O amigo que leva a própria comida escondida para não pagar no restaurante.

  • O parente que nunca troca um eletrodoméstico, mesmo quando ele já não funciona direito.

  • A pessoa que recusa convites para festas só porque sabe que vai ter que levar um presente.

Esses comportamentos acabam afastando as pessoas e criando uma imagem de avareza difícil de desconstruir.

O Impacto nas Relações

Ser mão de vaca pode trazer consequências sociais. Familiares e amigos podem se cansar desse excesso de economia e da falta de generosidade. Convívios acabam se tornando desgastantes, pois há sempre um desconforto ao lidar com alguém que mede cada centavo, até nas pequenas coisas.

Em relacionamentos amorosos, esse traço pode gerar brigas e frustrações. Ninguém gosta de sentir que está sendo controlado financeiramente ou que precisa pedir permissão para fazer qualquer gasto. O excesso de economia pode se transformar, com o tempo, em uma forma de controle.

Reflexão Final

Saber lidar bem com dinheiro é uma virtude. Mas é preciso entender que a vida também é feita de momentos, experiências e generosidade. Ser mão de vaca pode até proteger o bolso, mas também pode empobrecer as relações e a própria qualidade de vida.

Como em tudo, o equilíbrio é a chave. Guardar dinheiro é importante, mas saber gastá-lo com inteligência e prazer é tão necessário quanto. Afinal, de nada adianta juntar se, no fim, não soubermos aproveitar.

Por que o Mês de Fevereiro Tem 28 Dias?

Nenhum comentário

 

A História e as Curiosidades por Trás do Calendário

A História e as Curiosidades por Trás do Calendário

O mês de fevereiro é conhecido por ser o mais curto do calendário, tendo normalmente 28 dias e, a cada quatro anos, 29 dias, devido ao chamado ano bissexto. Mas você já se perguntou por que exatamente fevereiro tem essa quantidade incomum de dias? A explicação é histórica e remonta à Roma Antiga, quando o calendário começou a tomar a forma que conhecemos hoje.


O Calendário Romano: A Origem do Problema

Antes da criação do calendário juliano, o sistema de medição do tempo utilizado pelos romanos era bastante confuso e desorganizado. O primeiro calendário romano, atribuído ao rei Rômulo, fundador de Roma, tinha apenas 10 meses e começava em março e terminava em dezembro. O ano tinha cerca de 304 dias, e os meses de janeiro e fevereiro nem existiam.

Mais tarde, o rei Numa Pompílio, sucessor de Rômulo, percebeu que esse calendário não acompanhava corretamente as estações do ano e acrescentou dois novos meses: janeiro (Ianuarius) e fevereiro (Februarius), totalizando 12 meses e aproximando o calendário ao ciclo solar. Para completar o ano lunar (que tem aproximadamente 355 dias), fevereiro acabou ficando com 28 dias, pois os romanos tinham uma superstição contra números pares, mas precisaram fazer concessões para fechar o ciclo anual.


Por Que Não Ajustaram Melhor?

Fevereiro era o último mês do ano no calendário de Numa e foi escolhido para ser mais curto justamente por ter sido associado a rituais de purificação e à morte (o próprio nome "Februarius" vem de "Februa", um festival romano de purificação). Por esse simbolismo de encerramento e luto, fevereiro ficou com menos dias.


O Calendário Juliano e o Calendário Gregoriano

Em 46 a.C., Júlio César reformou esse sistema, criando o calendário juliano, que estabeleceu o ano com 365 dias e acrescentou o ano bissexto para corrigir o descompasso com o ciclo solar. Nessa reforma, fevereiro manteve seus 28 dias e ganhou o dia extra nos anos bissextos.

Séculos mais tarde, o calendário gregoriano, implantado pelo Papa Gregório XIII em 1582 e ainda usado hoje em dia, corrigiu pequenas imprecisões do calendário juliano, mas não alterou a quantidade de dias de fevereiro.


Por Que os Outros Meses Têm 30 ou 31 Dias?

Existe uma lenda curiosa, embora sem base histórica sólida, que diz que o imperador Augusto teria roubado um dia de fevereiro para dar ao mês de agosto (Augustus), para que julho (Julius), criado em homenagem a Júlio César, não tivesse mais dias do que seu próprio mês. Na prática, o calendário já estava definido com meses de 30 e 31 dias de forma alternada para completar 365 dias.


O Papel do Ano Bissexto

Como o ciclo da Terra em torno do Sol não dura exatamente 365 dias (mas cerca de 365,2422 dias), criou-se o ano bissexto, acrescentando um dia a cada quatro anos ao mês de fevereiro, para manter o calendário em sintonia com as estações.


Resumindo

Fevereiro tem 28 dias principalmente por uma combinação de tradição histórica, superstições antigas e a necessidade matemática de ajustar o calendário ao ciclo solar. O que começou como uma convenção prática acabou se tornando uma das peculiaridades mais interessantes da contagem do tempo.

Explorando a Riqueza da Fauna Brasileira: Um Tesouro Natural

Nenhum comentário

10 julho 2025

 

Explorando a Riqueza da Fauna Brasileira: Um Tesouro Natural

O Brasil é um país abençoado com uma das faunas mais ricas e diversificadas do planeta. Com uma variedade impressionante de biomas, desde as florestas tropicais da Amazônia até os campos abertos do Cerrado e as restingas do litoral, a fauna brasileira abriga milhares de espécies, muitas das quais são endêmicas e não podem ser encontradas em nenhum outro lugar do mundo.

Amazônia: O Pulmão do Mundo

Na vasta Amazônia, encontramos algumas das criaturas mais icônicas e fascinantes. O jaguar, o maior felino das Américas, é um símbolo de força e beleza. A arara-azul, com suas penas vibrantes, encanta a todos com sua presença colorida. Além disso, a Amazônia é o lar de inúmeras espécies de primatas, como o mico-leão-dourado e o uacari.

Cerrado: A Terra das Mil Cores

Ao sul da Amazônia, o Cerrado se destaca pela sua biodiversidade única. Aqui, encontramos animais como o lobo-guará, conhecido por seu aspecto elegante e pelo papel crucial que desempenha no ecossistema. As aves são particularmente abundantes nessa região, com espécies como o canário-da-terra e a seriema encantando os observadores.

Pantanal: Um Paraíso Aquático

O Pantanal é outra joia da fauna brasileira. Considerada a maior planície alagada do mundo, essa região abriga uma diversidade impressionante de vida selvagem. O tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, é um espetáculo à parte. Além disso, jacarés, capivaras e onças-pintadas fazem parte desse ecossistema incrível.

Costas e Oceanos: Vida Marinha Rica

Não podemos esquecer das águas que banham o Brasil! As costas brasileiras são habitadas por uma infinidade de espécies marinhas. As tartarugas marinhas, golfinhos e peixes coloridos dos recifes de coral impressionam tanto os mergulhadores quanto os amantes da natureza.

Desafios e Conservação

Infelizmente, a rica fauna brasileira enfrenta sérios desafios devido ao desmatamento, à poluição e às mudanças climáticas. A conservação dessas espécies é crucial para manter o equilíbrio ecológico e garantir que futuras gerações possam apreciar essa riqueza natural.

Por fim!

A fauna brasileira é um verdadeiro tesouro que merece ser celebrado e protegido. Cada animal desempenha um papel vital em seu habitat e contribui para a incrível tapeçaria da vida no Brasil. Vamos juntos valorizar e preservar essa riqueza natural!


Em busca de um par de sapatos

Nenhum comentário

03 junho 2025

 

Em busca de um par de sapatos

Meu ensaio trata de uma visita à região do Curdistão iraquiano em março de 2023, após uma ausência de mais de uma década, explorando a dificuldade de comprar um par de sapatos, visitando a casa da minha infância e refletindo sobre a questão da história e das adversidades da infância. Na narrativa, apresento a dinâmica evolutiva do meu relacionamento com a família, alguns aspectos da economia de mercado na região, trechos do êxodo curdo em 1991 e o apego à terra natal.

 
Ao me aproximar da cidade de Slemani, na região do Curdistão iraquiano, numa noite do início de março de 2023, senti que meus sapatos me dariam trabalho. As nuvens escuras no céu pareciam um tecido saturado sendo tocado, cobrindo os campos, colinas e montanhas com uma chuva feroz — o dilúvio de civilizações e religiões antigas. Suspeita-se que o dilúvio, que se diz ter afogado todo o mundo conhecido, tenha ocorrido em minha terra natal ou perto dela. Ao chegar à casa da minha irmã, saí correndo do carro para a varanda. Embora a curta distância tenha evitado que meus tênis Sketcher — um tamanho maior que o meu, dos quais meus pés sempre escorregavam — ficassem encharcados, um pouco de água da chuva entrou.

Então, vislumbrei uma cozinha lotada com a minha família — minha mãe, minhas três irmãs, meu irmão mais velho, minha cunhada e meus quatro sobrinhos e sobrinhas, alguns dos quais eu ia conhecer pela primeira vez — todos esperando para me receber. Eu morava no exterior havia mais de uma década, primeiro nos Estados Unidos, depois no Canadá. Minhas meias levemente molhadas deixaram de me preocupar. Duas das minhas sobrinhas, no início e no final da adolescência, me filmaram com seus celulares enquanto eu abraçava minha mãe em prantos e depois continuava a abraçar os demais.

Fui convidado a sentar no chão acarpetado da sala de estar para jantar com a família. Nem todos esperaram minha chegada, atrasada devido à tempestade. Meu irmão mais velho, que já havia se deliciado com a kifta curda caseira e parecia deliciosamente satisfeito, sentou-se em um sofá. Seu status elevado na família, desde a morte de nosso pai trinta anos atrás, era mais uma vez anunciado por sua posição elevada em comparação com o resto de nós no chão.

"O que há de errado com suas meias?", meu irmão mais velho perguntou enquanto ajeitava os óculos na ponta do nariz. Suas sobrancelhas se tensionaram, um maneirismo que ele adotava sempre que tentava projetar autoridade.

Eu estava usando meias listradas desencontradas, um hábito que desenvolvi para tornar a necessidade aparentemente banal de usar meias mais interessante.

Sentindo-me alegre, resultado da liberação de dopamina do reencontro, perguntei sinceramente: "Você gosta deles?"

Ele balançou a cabeça, não em negação ou indignação. Em vez disso, suponho, ele ficou surpreso por, em vez de desafiá-lo, eu ter escolhido lixar os cantos ásperos da nossa conversa. Ele então abriu um largo sorriso, e sob o brilho da luz fluorescente, vi as mudanças que vinte anos de casamento e a paternidade de duas filhas haviam causado em sua cabeça calva, testa e bochechas brilhantes e barriga saliente como um saco. Ele não era mais uma concha de ostra fechada com um comportamento sério. As provações do tempo e da paternidade pareciam ter rompido sua concha, revelando uma fragilidade oculta. No entanto, como comida crua, ele ainda precisava de tempero, aquela pitada extra de algo para torná-lo mais acessível. No caso dele, era humor e álcool.

Ele se levantou e foi até a cozinha, onde se sentou à mesa, serviu-se de uma bebida e me convidou para acompanhá-lo. Eu disse que faria isso em breve.

Enquanto eu ainda estava sentado com minha família ao redor da toalha de mesa no chão, onde o chá estava sendo servido, expressei minha preocupação por ter chegado despreparado.

"Onde posso comprar um par de sapatos?", perguntei. Eu tinha voado do Canadá com apenas dois pares de sapatos, em parte para reduzir minha bagagem e em parte porque estava seguindo o conselho de uma amiga que me disse que eu poderia encontrar um bom par de sapatos em casa por um preço razoável. Eu poderia ter sido batizada — talvez involuntariamente — no espírito consumista norte-americano de valorizar boas ofertas sempre e onde quer que fosse possível. Mas, no fundo, eu esperava encontrar um par de sapatos que pudesse reacender uma conexão perdida com minha terra natal. Não me lembro de uma época em que me sentisse confortável e feliz usando um par de sapatos. Quando criança, devido à pobreza, minha família me comprava sapatos baratos um ou dois tamanhos maiores — "eles serviriam perfeitamente no ano que vem", costumava dizer minha mãe. E, como adulta, a necessidade de deixar minha terra natal foi se expandindo tanto a cada ano que nunca considerei usar um par de sapatos preciosos que me conectasse à terra sob meus pés. Mas afinal, nossos sapatos não são o principal ponto de contato com o chão?

"Levo você ao shopping amanhã", disse minha irmã anfitriã. Mãe de quatro filhos — duas meninas e dois meninos gêmeos —, ela estava a caminho de se tornar a matriarca da família.

Na manhã seguinte, depois que as chuvas torrenciais diminuíram, minha irmã me levou ao Family Mall, um shopping center de três andares recém-inaugurado que se assemelhava a qualquer outro grande shopping. Passamos por um scanner corporal completo, e uma equipe de segurança, apática, revistou superficialmente a bolsa da minha irmã.

Entre as lojas estrategicamente localizadas e anunciadas de forma atraente estavam a marca de moda LC Waikiki, as marcas de roupas Koton e DeFacto, e a marca de calçados Flo — nomes que eu desconhecia até então. Só mais tarde descobri que todas eram, juntamente com outras lojas do shopping, empresas turcas. As exportações turcas para o Iraque são estimadas em bilhões de dólares anualmente, com as exportações de calçados chegando a milhões.

Experimentei vários pares de sapatos, mas ou não me serviram perfeitamente, ou encontrei uma característica que não me agradou: solas escorregadias, falta de suporte para o arco do pé, material de baixa qualidade. Lá estava eu, com a minha expectativa norte-americana adquirida de encontrar um par de sapatos que fosse funcional, durável e elegante, ao mesmo tempo que me opunha à simples categorização de esportivo, casual ou formal. Saí do shopping desiludido. Minha irmã prometeu que me levaria a uma feira de sapatos local, onde eu "com certeza encontraria um par".

Poucos dias depois, viajei para minha cidade natal, Darbandikhan, uma pequena cidade no norte do Iraque, perto de um lago de mesmo nome e a apenas 70 quilômetros da fronteira com o Irã, a leste. Eu pretendia visitar o bairro e a casa onde cresci, que não via há mais de duas décadas. Para ajudar a lidar com minhas ansiedades, pedi a um amigo que me acompanhasse. Afinal, cenas como comemorações de aniversário cativantes, amizades de infância carinhosas e gramados exuberantes com ruas impecáveis ​​estão ausentes da minha memória porque também estavam ausentes da minha infância.

Meu amigo e eu caminhávamos pelas vielas estreitas e estreitas, às vezes largas o suficiente para que apenas nós dois passássemos lado a lado. Em alguns trechos, os muros de concreto que delimitavam as casas em frente haviam cedido, obrigando-nos a caminhar em fila indiana. Os espaços vazios e caminhos de terra do passado haviam sido substituídos por ruas pavimentadas precárias, armazéns esqueléticos e algumas casas pequenas e novas que pareciam ter sido construídas para abrigar, e não para servir de lar. A ausência de sinais de nova infraestrutura ou grandes reformas indicava para mim que as mudanças isoladas no bairro não haviam sido esforços coletivos e organizados.

No final da tarde, algumas mulheres solitárias estavam sentadas nos degraus de concreto, observando passivamente os transeuntes, talvez esperando o retorno de algum parente do trabalho. Algumas crianças também estavam por ali, apáticas e desinteressadas, nas bolas de futebol murchas espalhadas no meio dos becos. Reconheci minha infância nelas — sem atividades extracurriculares e sem um futuro imaginário pelo qual lutar. Como eu havia testemunhado em primeira mão, raramente alguém prospera em um lugar assim. O melhor que se pode fazer é sobreviver sem cicatrizes.

"Seria difícil encontrar alguma família curda morando aqui agora", disse meu amigo. As famílias anteriores haviam construído novas casas em outras áreas da cidade e se mudado, e famílias árabes de outras partes do Iraque haviam se mudado para o bairro, Mulberry Spring, em busca de um pouco mais de segurança e estabilidade. Pichadas em várias casas, havia placas em árabe que diziam "À venda" ou "Para alugar", seguidas de um número de telefone.

Quanto mais nos aproximávamos da casa da minha infância, mais minha ansiedade aumentava. Reconheci os cantos onde sofri bullying e fui chamado de maricas, os becos estreitos onde nós, crianças, brigávamos com crianças de outros bairros e onde ladrões eram perseguidos à noite durante os anos difíceis de meados da década de 1990, devido às sanções das Nações Unidas ao país.

Assim que chegamos à casa, percebi como a porta principal de aço parecia pequena em contraste com as minhas lembranças. Era a porta que, para mim, um dia separava o seguro do inseguro. Agora, com 1,90 m de altura, para entrar pela porta eu tinha que me curvar. O muro de concreto da casa, que eu sempre tinha dificuldade para escalar sempre que a porta estava trancada e eu precisava me proteger do perigo — uma briga, um cachorro vadio ameaçador, uma pessoa enlouquecida passeando delirante e assim por diante — agora estava na altura da minha cabeça, e eu me vi agarrando seu topo, empurrando e me puxando para cima, escalando-o com facilidade.

A porta estava entreaberta; um momento de felicidade dissipou minhas preocupações anteriores de ter feito a viagem sem conseguir ver o interior da casa. Bati e disse "Olá?" por hábito e por cortesia; fora isso, era evidente que a casa estava vazia e abandonada. Entrei, e meu amigo me seguiu.
Aspectos da economia de mercado na região, trechos do êxodo curdo em 1991 e apego à pátria.


 
Figura 1 – Dilan Qadir em frente à casa de sua infância em Darbandikhan, região do Curdistão. 12 de março de 2023. Foto de Akbar Hassan. Copyright @Culturico

A casa estava em ruínas e em péssimo estado de conservação. Rachaduras haviam se formado nas paredes, assim como as rugas que agora tenho no rosto. A tinta cinza dos batentes das janelas e das portas estava descascada, semelhante à minha calvície. A casa havia envelhecido, assim como eu.

As portas internas estavam trancadas. As janelas não tinham vidro. Espiei os cantos escuros dos cômodos. Um silêncio sinistro pairava lá dentro, como se as pessoas que um dia viveram ali tivessem fugido, deixando apenas sussurros invisíveis que eu poderia ouvir se ficasse tempo suficiente.

Cacos de vidro, pedaços de metal e pedaços de pedras e pedras cobriam o amplo pátio. A desordem espalhada fazia a casa parecer ter sido atingida pela onda de choque de uma explosão. Eu tinha medo de pisar inadvertidamente em algum objeto pontiagudo e me machucar, como já acontecera muitas vezes quando eu era criança. Felizmente, eu estava usando botas de caminhada Columbia de cano alto, que também eram um tamanho maior do que eu. Eu esperava que suas solas robustas protegessem não apenas contra vidro, mas também contra pregos. Ao contrário das minhas sandálias e tênis de infância – cujas partes provavelmente eram coladas em fábricas decadentes na Turquia e no Irã – eu me sentia mais seguro com minhas botas de caminhada.

Eu estava na casa onde, numa noite do início de abril de 1991, minha família reuniu alguns cobertores, sacolas de provisões e itens pessoais, entrou em um carro e dirigiu até a vila próxima de Bani Khelan. De lá, nos juntamos a centenas de outras famílias e marchamos por seis horas para percorrer os trinta quilômetros até a fronteira iraniana. Fugíamos do medo de ataques químicos e outras retaliações do regime iraquiano em resposta aos levantes curdos no início de março.

Choveu a noite toda durante a nossa viagem. O aguaceiro incessante não só deixou as estradas escorregadias, como a água da enchente também levou algumas pessoas. Em certo momento, minha mãe, que me carregava nas costas, escorregou e eu caí junto. Aterrorizada com a queda, recusei-me a continuar sendo carregada e caminhei várias horas pelo resto da viagem. Eu tinha três anos e meio, e a maior parte do que me lembro consiste nas famílias caminhando em fila pela estrada, nos carros se movendo mais devagar que as pessoas, na chuva contínua e na lama.

Naquela mesma primavera de 1991, minha família de dez pessoas estava entre os mais de um milhão de curdos que fugiram em direção às fronteiras da Turquia e do Irã , onde passamos vários meses em tendas e campos de refugiados. A região não era estranha a tais êxodos. Já no reinado do rei assírio Tiglate-Pileser III (744-727 a.C.), várias campanhas de deportação em massa foram orquestradas, durante as quais centenas de milhares de pessoas de diferentes terras foram reassentadas. Uma campanha em particular se destaca, pois os governadores locais foram aconselhados a fornecer calçados aos deportados — um ato humano tirânico para tornar a crueldade mais suportável (1) . Quando, no início deste ano, o presidente dos EUA, Donald Trump, falou em realocar os habitantes de Gaza na Palestina , reassentando-os em países vizinhos a fim de transformar o enclave na "Riviera do Oriente Médio ", foi fácil reconhecer o eco de desejos autoritários em suas palavras, ações que há muito atormentam pessoas em algumas partes do mundo.

Na casa da minha infância, meu amigo e eu subíamos uma escada de metal até o terraço plano, onde eu costumava dormir com minha família nas noites de verão em camas dispostas sobre estruturas de metal. O terraço, que costumava acomodar minha família de nove pessoas, parecia menor do que o espaçoso terraço da minha memória. Ainda no lugar estava o parapeito na altura do quadril, sobre o qual eu costumava me inclinar quando criança. No início de cada outono, quando as pessoas geralmente estavam desesperadas por chuva, grupos de crianças desfilavam pelos becos segurando uma boneca feita à mão em uma estrutura em forma de cruz — como um espantalho — e eu borrifava ou despejava um balde de água sobre "A Boneca da Chuva", enquanto as crianças, emocionadas, cantavam a plenos pulmões: "Ó, amigos e entes queridos, que chova para os empobrecidos e os pobres!"
, aspectos da economia de mercado na região, trechos do êxodo curdo em 1991 e apego à pátria.
 

Figura 2 – Dilan Qadir no telhado da casa de sua infância em Darbandikhan, região do Curdistão. 12 de março de 2023. Foto de Akbar Hassan. Direitos autorais @Culturico

Também intacta e imune à passagem do tempo e à mudança de dono estava a barra de aço de um metro de altura que se projetava em um canto. Lembro-me dela como o local onde costumávamos amarrar o cachorro branco de médio porte da minha família — o cachorro que tivemos que doar porque vizinhos horrorizados alegavam que ele estava contaminando nossa casa, recusando-se até mesmo a pisar em nosso quintal.

No horizonte, viam-se as montanhas que circundavam parcialmente a cidade. O sol começava a se pôr. Cachorros latiam ao longe. Meu amigo e eu tiramos algumas fotos, descemos a escada e fomos embora.

Fiquei grata por minha amiga ter me acompanhado e aliviada por a visita ter corrido relativamente bem. Minhas botas de caminhada cumpriram seu papel e meus pés saíram ilesos. Mesmo assim, eu precisava de outro par de sapatos para usar em visitas e reuniões sociais, um par de sapatos que me fizesse sentir uma conexão com a terra. Aguardava ansiosamente minha próxima ida ao mercado com minha irmã, com certa apreensão.

Minha irmã estacionou o carro em uma pequena garagem perto da icônica praça conhecida como Bardarki Sara, no coração de Slemani. Tanto ela quanto eu estávamos com cafeína e, enquanto caminhávamos energicamente pelas calçadas de paralelepípedos, absorvendo o calor do sol da tarde, irradiávamos uma confiança que proclamava: " Esta vai ser uma viagem de compras bem-sucedida!"

O mercado de calçados consistia em uma longa fileira de lojas individuais, uma de frente para a outra, exibindo todos os tipos de calçados em várias prateleiras. Evitei os lojistas extrovertidos, que nos chamavam para nos aproximar e nos convidavam a entrar. Quando compro, gosto de olhar os itens com calma, tocá-los, experimentá-los. Não acredito que nenhum dos perfis comuns de comprador, como o Navegador, o Cliente Indeciso, o Pesquisador ou o Andarilho, se aplique a mim. Prefiro ser chamado de Ruminador.

Minha irmã e eu fomos a algumas lojas cujos donos, quietos e aparentemente reclusos, eram mais do meu agrado. Eu tinha reduzido minhas opções a botas de cano alto. Calcei várias Chelsea e botas sociais, mas elas estavam apertadas demais. Com todos aqueles anos comprando um tamanho maior do que o necessário, o hábito se consolidou. Mesmo agora, como uma adulta independente sem a possibilidade de meus pés crescerem, costumo comprar sapatos tamanho 43 em vez de 46. Só por precaução.

Os sapatos no mercado de calçados, com marcas como Ecco, Gucci e Sorel estampadas, não eram genuínos; eram falsificações importadas da Turquia, Irã e China. E depois de visitar várias lojas, ficou claro que todas vendiam o mesmo tipo de calçado. Desisti.

“Não há nada para mim aqui”, eu disse à minha irmã.

“Vamos ao bazar de artigos usados”, ela sugeriu.

O labiríntico mercado de artigos usados ​​ali perto consistia em centenas de lojas que vendiam roupas importadas de segunda mão, a maioria da Europa. Eu fazia compras quase exclusivamente lá quando era estudante universitário na cidade. Naquela época, eu era um dos muitos jovens descontentes, críticos dos partidos governantes e dos rígidos costumes religiosos, que afirmavam que o que nos ligava à terra não era o patriotismo ou a religião — as duas principais fontes de lealdade e orgulho —, mas nossos sapatos, nossos sapatos importados, falsos, baratos ou de segunda mão. Quando deixei a região no verão de 2012 para a América do Norte, eu usava apenas um par de sandálias abertas, convencido de que encontraria sapatos no meu destino — sapatos que me ajudariam a criar uma conexão com a nova terra. Mas, temendo retornar à minha terra natal e enfrentar censura e perseguição por minhas críticas aos partidos políticos governantes e atos opressivos de religião, vivi nos Estados Unidos e depois no Canadá, onde finalmente encontrei refúgio. Minha situação espiritual foi ofuscada por questões práticas e urgentes, como moradia, saúde e renda.

No Curdistão, nunca usei calçados tradicionais curdos, conhecidos como klash . Os klash são feitos de algodão comprimido e tecido, exigem cuidados constantes, não são resistentes à água e as pessoas os usam principalmente durante as celebrações do Newroz. Antigamente, os sapateiros da região fabricavam sapatos semelhantes a mocassins, conhecidos como kawsh , que eram feitos de couro de animal e, até certo ponto, repelentes à água, mas a profissão desapareceu e minha geração não está familiarizada com esses calçados.

Em uma das lojas, calcei um par de botas marrons de couro legítimo — Panama Jack — que pareciam combinar bem com minha calça cáqui. Mas eram quase dois números maiores. Eu estava prestes a recusar a compra quando olhei para minha irmã, sentada em uma cadeira à minha frente; seu rosto demonstrava consternação, mas também reconheci traços de esperança de antes. Eu não podia decepcioná-la. Peguei minha carteira para pagar, mas ela não deixou. Ela comprou as botas para mim, pois esse tinha sido um dos motivos pelos quais ela tinha vindo comigo. Para deixá-la feliz, usei as botas na volta para casa.

Nos dias que se seguiram, alguns amigos da família comentaram sobre minhas botas. A essa altura, embora as pessoas na minha vida já estivessem familiarizadas com a ideia de eu usar sapatos de tamanho grande, as botas de segunda mão deviam ter parecido de palhaço. Não me importei. Foi um alívio deixar as compras de sapatos para trás e me concentrar em passar tempo com minha família e amigos.

Ainda assim, um sentimento de decepção persistia. Não percebi na época, mas a esperança de restabelecer um senso de pertencimento à minha terra natal por meio de um par de sapatos comprados na região e usados ​​durante minha estadia de quatro semanas não passava de uma ilusão. Quanto mais eu ficava lá, mais sentia a antiga raiva e descontentamento ao retornar, querendo me manifestar contra a corrupção, os valores tradicionais e as expectativas religiosas que ofendiam a dignidade e as liberdades individuais. Percebi que, se eu ficasse muito tempo, minha vida estaria em perigo.

Quando voltei para o Canadá, deixei as botas na casa da minha irmã. "Gostaria de usá-las na próxima vez que eu for visitá-la", eu disse a ela. Ela as colocou debaixo de uma escrivaninha no quarto de hóspedes no segundo andar da casa dela, onde eu havia me hospedado.

Do jeito que está, sem experimentar o nível de riqueza necessário para me dar ao luxo de comprar sapatos sob medida, me resignei a encontrar os sapatos genéricos do tamanho perfeito. De volta a Vancouver, BC, finalmente comprei um par de botas Chelsea Blundstone justas. Eu as uso com frequência. Elas combinam bem com meus shorts, calças de moletom e chinos. Na verdade, talvez eu compre outro par. Da próxima vez que visitar minha terra natal, não terei que me preocupar em levar vários pares de sapatos ou em fazer compras lá. Se as botas Blundstone corresponderem à durabilidade prometida, viajarei com elas. Caso contrário, há um par de botas Panama Jack — dois números maior — me esperando na casa da minha irmã. Usando essas botas, posso não sentir a conexão com minha terra natal que esperava, mas desta vez, seriam sapatos guardados com amor.

Matheus, da dupla com Kauan é assaltado a caminho de evento em SP

Nenhum comentário

29 maio 2025

Matheus, da dupla com Kauan é assaltado a caminho de evento em SP

O cantor Matheus, da dupla sertaneja com Kauan, passou por um momento tenso na tarde desta quarta-feira (28/5), enquanto se dirigia a um evento na zona oeste de São Paulo. Durante o trajeto pela Marginal, ele teve o celular furtado por um homem que se aproximou do carro com o vidro entreaberto. 'Estava usando o telefone quando ele simplesmente enfiou a mão e saiu correndo', contou.

Apesar do susto, Matheus seguiu até o local do evento que comemorava os 15 anos da dupla e também o lançamento de sua autobiografia 'Que sorte! O Nosso santo bateu', além do novo álbum 'Paraquedas'. Visivelmente abalado, o cantor falou sobre o ocorrido durante a coletiva de imprensa: 'Peço desculpas, ainda estou um pouco trêmulo. A gente se sente invadido, é uma sensação ruim'.

Ele conseguiu se recuperar a tempo?

Sim. Pouco tempo depois do ocorrido, Matheus foi surpreendido por um gesto de carinho inesperado. Um fã presente na comemoração lhe entregou um celular novo como forma de apoio. Comovido, o artista agradeceu e seguiu normalmente com a programação da noite, incluindo um pocket show especial para os convidados.

O episódio reacende discussões sobre a segurança em grandes cidades e os riscos enfrentados por celebridades em situações cotidianas. Mesmo com assessoria e cuidados, momentos como esse mostram que ninguém está imune.

Como ele está agora?

Matheus passa bem e garantiu que, apesar do susto, não deixaria que o incidente tirasse o brilho da celebração. 'O importante é que estamos aqui, comemorando tudo o que construímos. O resto a gente resolve depois.'

Wagner Moura leva prêmio de Melhor Ator em Cannes por 'O agente secreto'

Nenhum comentário

26 maio 2025

 

Wagner Moura leva prêmio de Melhor Ator em Cannes por 'O agente secreto'
crédito: Reuters

O cinema brasileiro voltou a brilhar na Croisette neste sábado (24/5), com Wagner Moura conquistando o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes por sua atuação em “O agente secreto”, de Kleber Mendonça Filho.

No filme, Moura interpreta Marcelo, um professor universitário e especialista em tecnologia que, ao retornar ao Recife, em 1977, se vê enredado numa rede de espionagem e vigilância durante o regime militar.

A performance intensa de Moura foi apontada pela crítica como um dos grandes destaques do festival, com elogios à sua habilidade de transmitir vulnerabilidade e força em um personagem complexo. 

Conhecido internacionalmente por seu papel em “Narcos” e, mais recentemente, em “Guerra Civil”, Moura reafirma sua versatilidade com atuação que emociona e provoca. 

"Eu tive a sorte de ter a oportunidade de trabalhar com o Wagner Moura, um grande ator e uma grande pessoa. Espero que este filme lhe traga coisas maravilhosas. Obrigado ao júri e à presidente Juliette Binoche", disse Kleber Mendonça Filho ao agradecer pelo colega, que não estava presente à cerimônia de premiação.

Em disputa pela Palma de Ouro com outros 21 longas, "O agente secreto" teve sua sessão de gala em Cannes no último dia 18 e foi aplaudido de pé por 13 minutos.

O destaque de “O agente secreto” no festival representa não apenas um reconhecimento à qualidade artística do filme, mas também uma celebração da capacidade do cinema brasileiro de dialogar com questões políticas e sociais de forma inovadora e impactante.

Isso tem sido visto na safra atual de produções nacionais que estão sendo reconhecidas internacionalmente, como “Ainda estou aqui”, de Walter Salles; e “O último azul”, de Gabriel Mascaro, que recebeu o Urso de Prata (Grande Prêmio do Júri) no Festival de Berlim deste ano.

Parte da crítica presente em Cannes apostou que "O agente secreto" será um candidato a indicações ao Oscar 2026. (Com agências)


Pode parecer uma plataforma para os filmes

Nenhum comentário

22 maio 2025

 

Pode parecer uma plataforma para os filmes

Se Donald Trump realmente quer salvar Hollywood, talvez ele precise se aventurar fora de sua zona de conforto e assistir mais cinema de arte europeu.

festival de cinema de Cannes , que se encerra no sábado, é, em muitos aspectos, a própria definição do "globalismo" que o movimento Maga do presidente americano despreza. Passe pelas filas que serpenteiam ao longo do Palais des Festivals e você ouvirá línguas e sotaques de todos os cantos do globo. O Marché du Film, onde os profissionais da indústria fecham seus negócios, está repleto de pessoas inteligentes de todo o mundo acenando para os produtores dos EUA com incentivos fiscais irresistíveis - resultando no tipo de filmes "produzidos em terras estrangeiras" que o presidente dos EUA propôs punir com tarifas de 100% no início deste mês. Na gala de abertura, Cannes deu ao arqui-inimigo de Trump, Robert De Niro, uma plataforma para reunir o mundo do cinema contra o presidente dos EUA, "sem violência, mas com grande paixão e determinação".

Mas então você se senta em uma sala de projeção escura no Palais, os acordes de piano de Aquarius, de Camille Saint-Saëns, ecoam pelo trailer de Cannes, e essa distinção não é mais tão clara. No filme de abertura da diretora francesa Amélie Bonnin, Partir un Jour, a chef celebridade, motivada, porém estressada, Cécile está se preparando para a inauguração de seu novo restaurante de alta gastronomia em Paris quando recebe a notícia da saúde debilitada de seu pai, que administra um restaurante de beira de estrada comum chamado Pit Stop, no interior. O pai de Cécile provoca a filha por seu desdém pelo paladar pouco sofisticado dos "caipiras", mas fica evidente desde o início que as simpatias do filme estão a uma curta distância do centro cosmopolita da França.

Se no cerne da guerra cultural travada por Trump e seus aliados populistas na Europa existe uma divisão entre "alguns lugares" com raízes locais e "qualquer lugar" cosmopolita, Partir un Jour é, em grande parte, um filme sobre "algum lugar". Em última análise, rejeita lagosta com sabor de shiso, panna cotta de roquefort e estrelas Michelin em favor de boeuf bourguignon, cachorros-quentes e pneus Michelin. Em Cannes, revelou-se menos uma nota de desânimo do que o início de um tema.

Para onde quer que você olhasse, havia histórias com um senso de lugar muito específico: de pessoas que estavam presas em locais remotos (The Sound of Falling, da estreante alemã Mascha Schilinski, e Die, My Love, da autora escocesa Lynne Ramsay) ou que retornavam a eles (o drama sobre coletes amarelos Dossier 137, do diretor francês Dominik Moll).

A emoção da vida na cidade grande raramente foi vislumbrada em qualquer uma das muitas telas do festival. O diretor turco-alemão Fatih Akin, que estourou no cenário internacional há 20 anos com o explosivo drama urbano Head-On, chegou à Riviera com Amrum, um filme ambientado inteiramente em uma remota ilha do Mar do Norte no final da Segunda Guerra Mundial. Até mesmo o drama de mistério com infusão de techno, Sirât, do diretor espanhol Oliver Laxe, não se passa em uma boate de Barcelona, ​​mas em uma rave no deserto. Os deixados para trás? Eles não foram exatamente ignorados, mas colocados no centro do palco e armados com rifles automáticos em Eddington, do diretor de "terror elevado", Ari Aster, uma sátira da Covid tão imparcial em sua zombaria das loucuras da pandemia que recebeu críticas por buscar "compatibilidade com Maga" .

Uma visão mais branda seria a de que os cineastas não deveriam se importar com os binários evocados pelos políticos em primeiro lugar, porque a arte, em sua melhor forma, os dissolve de qualquer maneira. Alguns dos filmes mais interessantes em Cannes eram filmes de algum lugar e em qualquer lugar, enraizados em um lugar, mas que se expandiam para fora. "Uma Luz Que Nunca se Apaga", do cineasta finlandês Lauri-Matti Parppei, sobre um flautista prodígio que retorna à casa de sua família no litoral após sofrer um colapso, começa como o de Bonnin, mas inverte um enredo familiar: na zona rural de Rauma, o protagonista Pauli encontra significado não na simplicidade folclórica, mas em se juntar a uma banda experimental de noise-core.

O Amrum de Akin provoca o eterno sujeito alemão da Heimat ("pátria") e apresenta respostas inusitadas. O que faz alguém pertencer a Amrum, pergunta-se o protagonista infantil do filme em determinado momento. Seus colegas de escola acham que é preciso nascer lá, enquanto sua mãe nazista acredita que isso corre no sangue. Mas os habitantes mais antigos da ilha lhe dizem que isso é tudo bobagem: os verdadeiros habitantes de Amrum, eles acreditam, são aqueles que deixam a ilha na primeira oportunidade.

Imogen Poots em A Cronologia da Água.
Imogen Poots em A Cronologia da Água. Fotografia: Cortesia: Festival de Cinema de Cannes

Os filmes "em qualquer lugar" em Cannes foram poucos e esparsos, mas talvez não seja coincidência que aqueles que se encaixavam no rótulo eram os que tinham maior potencial de bilheteria: o oitavo filme da franquia Missão Impossível, de Christopher McQuarrie, e o mais recente filme de Wes Anderson, The Phoenician Scheme, cujo obscuro protagonista industrial Zsa-Zsa Korda (Benicio del Toro) nem precisa de passaporte, porque "eu moro em qualquer lugar".

São filmes de qualquer nível em termos de produção: as grandes cenas de ação de M:I 8 foram filmadas em Londres, Noruega e no ar rarefeito da África do Sul , enquanto "The Phoenician Scheme" se passa na Fenícia, um país fictício com aparência do Oriente Médio, mas foi filmado inteiramente em um estúdio em Babelsberg, nos arredores de Berlim, Alemanha. Isso pode ser esperado de filmes escapistas com foco em bilheteria, mas também se aplica a duas produções de arte com envolvimento de Hollywood: "Die, My Love", estrelado por Jennifer Lawrence, e a estreia de Kristen Stewart na direção, "The Chronology of Water", se passam em Montana, Califórnia, Texas e Oregon – e foram filmados no Canadá, Letônia e Malta.

Este é claramente o tipo de "filmes feitos em terras estrangeiras" que Trump quer ver de lado. No entanto, ao longo do festival, o consenso gradualmente mudou para a suposição de que as tarifas não serão aplicadas como são, porque seriam impraticáveis. Como Anderson perguntou sarcasticamente quando questionado sobre as tarifas presidenciais para filmes: "Você pode reter o filme na alfândega?"

“A maioria das pessoas acha que isso só levará os EUA a copiar o modelo britânico”, disse Andreas Pense, advogado alemão que assessora projetos cinematográficos internacionais. O Reino Unido tem sido, de longe, o país mais bem-sucedido da Europa em atrair filmes americanos, tendo pago £ 553 milhões em incentivos fiscais a empresas cinematográficas em 2022-23 . “Mas os EUA teriam que desembolsar uma quantia absurda de dinheiro, e conseguir que isso seja aprovado não será fácil”, acrescentou Pense. “As produções americanas são simplesmente mais caras.”

Alguns países europeus com presença em Cannes pareceram surpreendentemente otimistas em se manter firmes em uma corrida armamentista com incentivos fiscais com os EUA. A Hungria, por exemplo, não oferece apenas 30% em descontos para produtores estrangeiros que fazem filmes no país da Europa Central, mas também pode fornecer equipes experientes e mais baratas do que as dos EUA, porque os sindicatos têm muito menos peso em seu setor cinematográfico do que nos EUA. As produções americanas filmadas fora de Budapeste este ano incluem o drama de espionagem da Guerra Fria, Pôneis, com Emilia Clarke e Haley Lu Richardson, e a comédia sobre invasão alienígena, Alpha Gang, estrelada por Cate Blanchett e Channing Tatum. Seu trunfo, dizem os profissionais do cinema húngaro, é que Budapeste pode representar qualquer lugar do mundo: Paris, Buenos Aires, Moscou e até Londres e Nova York. Se você está fazendo um filme para qualquer lugar, o que o impede?

Talvez o presidente dos EUA devesse se inspirar no Dogma 95, o notório movimento cinematográfico de vanguarda dinamarquês. Em Cannes, um grupo de cinco cineastas nórdicos lançou uma retomada da escola autolimitada de cinema que deu origem a Lars von Trier e Thomas Vinterberg. Eles mantiveram apenas uma regra do manifesto original de 1995: "O filme deve ser rodado onde a narrativa se passa".

Uma publicação no Truth Social, uma ordem executiva que obriga todos os diretores americanos a fazer filmes americanos ambientados nos Estados Unidos, e os problemas de Hollywood seriam resolvidos de uma só vez. A seguir: descubra se alguém ainda gostaria de assistir a esses filmes.

Veja Isso!

© Copyright - Jornal o Popular - Todos os direitos reservados.

Jornal O Popular