Jornais de hoje destacam que Gaza voltou a receber ajuda humanitária após três meses de bloqueio por parte de Israel. De fato, sob forte pressão internacional depois da denúncia da OMS que mais de 2 milhões de pessoas estavam passando fome por não ter o que comer, permitiu-se a entrada de 5 caminhões com comida e remédios. Melhor repetir porque é difícil de acreditar:apenas cinco!
Em tempos de guerra, catástrofes climáticas e instabilidade
econômica, a fome volta a ser uma tragédia cotidiana para centenas de milhões
de pessoas ao redor de um mundo de fartura de alimentos. No entanto, mais cruel
que a fome em si é a decisão deliberada de ignorá-la — ou, pior,
instrumentalizá-la politicamente. O governo Trump 2 marca justamente essa
virada: o uso da fome como arma política e ideológica, atacando diretamente os
pilares de ajuda humanitária do sistema multilateral das Nações Unidas e impondo
uma agenda que despreza os mais vulneráveis.
O recém divulgado Relatório Global sobre Crises Alimentares
2025 oferece um retrato devastador: mais de 280 milhões de pessoas em 59 países
e territórios enfrentam níveis agudos de insegurança alimentar — o maior número
já registrado desde 2017 quando o relatório começou a ser divulgado. Desses, 24
países se encontram em situação “catastrófica” ou de emergência, com risco
iminente de fome generalizada,“famine” no termo técnico que caracteriza a
situação onde as pessoas estão literalmente morrendo de fome!. Os principais
fatores são ( nessa ordem de importância): 1- os conflitos armados, 2-os
choques climáticos extremos e 3- as dificuldades econômicas geradas por dívidas
externas impagáveis e inflação persistente.
Nada disso é invisível, conhecemos as causas. O que falta é
vontade política — ou melhor, sobra boicote, sabotagem… Desde sua volta à
presidência, Trump retomou o desmonte do multilateralismo com entusiasmo
renovado. Em janeiro de 2025, assinou uma ordem executiva que proíbe qualquer
menção à diversidade, equidade e inclusão (DEI) em documentos oficiais do
governo federal norte-americano, classificando essas iniciativas como
“imorais”. Essa postura se estendeu rapidamente às agências da ONU, com pressões
explícitas como na FAO, por exemplo, onde o embaixador americano exigiu na
última reunião do seu Conselho, eliminar os termos como “gênero”, “mudanças
climáticas” e “justiça social” de seus programas e comunicados.
Os ataques não são apenas retóricos. O Programa Mundial de
Alimentos (PMA), que em 2023 prestou assistência alimentar a mais de 150
milhões de pessoas, anunciou cortes de 30% por conta da retirada de
financiamento dos Estados Unidos. Isso significa menos cestas básicas
distribuídas, menos refeições escolares, menos apoio à agricultura de
subsistência local. Como consequência, a capacidade de resposta às piores
crises como são os deslocamentos forçados na Faixa de Gaza, no Sudão, no Haiti,
para citar apenas alguns dos mais atingidos, fica dramaticamente comprometida.
A combinação entre conflito armado, clima extremo e crise
econômica exige uma urgente e intensa ação internacional coordenada para
alcançar ao menos uma trégua duradoura para permitir a retomada da ajuda
humanitária. Mas a postura americana atual é de cinismo: em abril, Trump
determinou que nenhuma agência federal americana poderia considerar impactos
climáticos na formulação de suas políticas públicas!
Enquanto isso, 36 milhões de pessoas são forçadas a se
deslocarem internamente e cerca de 10 milhões a migrar de seus países por
motivos ligados à fome. Os sistemas alimentares, já fragilizados por secas,
inundações e aumento dos preços, estão colapsando diante da omissão dos grandes
doadores em prover ajuda humanitária. E quando os Estados Unidos abandonam
fóruns como a Parceria Global para Agricultura Climaticamente Inteligente ou
boicotam resoluções sobre nutrição na ONU, enviam um sinal inequívoco: o combate
à fome só importa se estiver alinhado a seus interesses geopolíticos. Nem nos
estertores da Alemanha de Hitler se bloqueou a ajuda humanitária!Exatamente por
esse motivo: por ser humanitária, destinada a todos os humanos que passam fome!
Hoje a retórica da “soberania nacional” se impõe cada vez
mais sobre os princípios de solidariedade internacional. Em março de 2025, os
EUA foram o único país a votar contra a prorrogação da Década de Ação sobre
Nutrição proposta por Brasil e França na Assembleia Geral da ONU. A resolução
teve apoio de 158 países — nenhum outro votou contra. A justificativa do
governo Trump 2 foi que o combate à má nutrição não traz “benefícios tangíveis
para o povo americano”.
A ofensiva ideológica não parou por aí. Na última reunião do
Conselho da FAO, os EUA rejeitaram uma proposta que buscava adaptar a
governança da agência aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
repetindo a postura já assumida pouco antes na ONU. O atual governo americano
pressiona a FAO a agir apenas como uma prestadora de assistência técnica,
limitada à distribuição de sementes e fertilizantes, sem tocar nos temas de
equidade, justiça climática ou soberania alimentar. É uma tentativa clara de despolitizar
a luta contra a fome — como se ela fosse neutra, como se não tivesse causas
sociais e econômicas.
No entanto, os fatos cotidianos desmentem essa falsa
dicotomia entre interesse nacional e dever global. A própria FAO estima que
seriam necessários cerca de US$ 540 bilhões por ano em investimentos adicionais
para erradicar a fome até 2030 — valor irrisório diante dos mais de US$ 2
trilhões que o mundo gasta anualmente em armamentos. A fome, portanto, não é um
problema técnico, e muito menos inevitável: é uma escolha política.
Ao politizar a cooperação internacional, os Estados Unidos
enfraquecem a confiança no sistema multilateral, isolam-se no cenário
diplomático e colocam em risco milhões de vidas. A sobrevivência de
instituições como FAO, PMA e ACNUR (agência da ONU que atua na Palestina) não
pode depender da postura ideológica de um único governo. A resposta passa por
mecanismos de financiamento mais compartidos e estáveis, liderados também por
países do Sul Global. E acima de tudo, pela reafirmação que segurança alimentar
é um direito humano de todos — não apenas de alguns privilegiados.
A ONU, como representante da grande maioria dos países do mundo, precisa reafirmar que seguirá esse caminho do multilateralismo tendo a cooperação e a dignidade como pilares de um futuro comum. A garantia incondicional da ajuda humanitária é parte desse futuro. Afinal, a fome está batendo à porta de um número sem precedentes de pessoas. Ignorá-la — ou usá-la como arma política-ideológica — é uma afronta à humanidade, à nossa própria condição de seres humanos!
Materia de:José Graziano da Silva
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